sexta-feira, 13 de junho de 2008

SE ELES NÃO TIVESSEM VINDO

Dom João estaria “con la cabeza perdida casi del todo”?

Desde o início da Revolução Francesa, em 1789, e, sobretudo, desde a execução de Luís XVI em 1793, o ambiente nas cortes européias era de muita aflição. Em Portugal e na Espanha, era também de temor, devido à ligação familiar de seus soberanos com os Bourbon da França. Este enlace vinha desde Felipe V (1683-1746), neto de Luís XIV, que dera início ao reinado dos Bourbon na Espanha. Em Portugal, a presença dos Bourbon era representada por Carlota Joaquina, mulher do príncipe regente. Guilhotinado Luís XVI, Carlos IV, rei da Espanha, e seu genro, o príncipe regente português D. João VI declararam guerra à França. No entanto, a potência espanhola não era mais a mesma como nos tempos de Felipe II. Apenas dois anos depois, celebraria com a França Revolucionária os tratados de paz de Basiléia, que obrigaram Portugal a recuar também.

Em 1789, Napoleão Bonaparte obtém vitórias na Itália e no Egito e é eleito primeiro cônsul. A Europa entra em pânico. Uma após outra, Áustria, Prússia e Rússia, as principais potências, foram derrotadas e forçadas a assinar tratados muitas das vezes humilhantes. Somente a Grã-Bretanha se mantinha de pé, protegida pela geografia e pela força de sua Marinha de Guerra. Em 1801, o único país continental que ainda não tivera rompido com a Coroa britânica, pressionado por Napoleão, era a velha metrópole, Portugal. A corte portuguesa estava agora ameaçada em terra por Napoleão e no mar, pela Grã-Bretanha.


O príncipe regente, Dom João, angustiava-se, uma vez que não fora educado para governar e não gostava de governar. Tornara-se herdeiro forçado do trono após a morte do irmão mais velho, D. José, em 1788. Naturalmente pacífico e tímido, hesitava diante de decisões difíceis. E nada mais difícil do que aquilo que o desafiava. Sua própria corte dividia-se entre simpatizantes dos ingleses como D. Rodrigo de Sousa Coutinho, primeiro conde de Linhares, e dos franceses, como Aires José Maria de Saldanha Albuquerque Coutinho Matos e Noronha, segundo conde da Ega, e Antônio de Araújo e Azevedo, primeiro conde da Barca. D. João tentava não desagradar a nenhum dos dois lados. Mas um dia teria que tomar uma decisão.
Em 1801, a França convenceu a Espanha, sua aliada, a assinar um ultimato conjunto exigindo de Portugal o rompimento com a Grã-Bretanha.


No mesmo ano, Portugal foi forçado a assinar um tratado humilhante em Badajoz, obrigando-se a fechar os portos e o território à Grã-Bretanha. As As vitórias de Napoleão se tornavam freqüentes, agravando a situação do governo português. Araújo e Azevedo tornou-se ministro dos Negócios Estrangeiros em 1803, quando foi assinado o Tratado de Madri, que estabelecia a neutralidade entre França, Portugal e Espanha.
No ano seguinte, o general Andoche Junot foi nomeado ministro francês na corte portuguesa. Carlota Joaquina tentou dele se aproximar objetivando selar a paz entre os dois países. Dom João estava apavorado, entrando em profunda depressão em 1805, inclusive isolando-se entre os frades do convento de Mafra. A loucura da mãe, D. Maria I, fazia com que surgissem os piores receios sobre a natureza de sua doença. O isolamento do regente incentivou a Conspiração do Alfeite (1805-6). A 13 de agosto de 1806, a própria Carlota Joaquina escreveu à mãe, Maria Luísa, rainha de Espanha, dizendo que D. João estava “con la cabeza perdida quasi del todo” e pedindo uma intervenção em favor dela e de seus filhos.

No ano seguinte, Napoleão, após ter terrotado os russos, na batalha de Friedland, volta seus olhos novamente para Espanha e Portugal. Em agosto, intimou Portugal a cortar totalmente as relações com a Grã-Bretanha, aderir ao bloqueio continental e seqüestrar os bens dos súditos britânicos, ao mesmo tempo em que concentrava tropas na fronteira com a Espanha, sob o comando de Junot. A corte de Lisboa continuou o jogo duplo entre franceses e ingleses. Em setembro, aderiu ao bloqueio continental, que fechava todos os portos europeus ao comércio com a Inglaterra. No mês seguinte uma celebração secreta coloca em pauta a possível transferência da corte para o Brasil e a abertura dos portos coloniais.


França e Espanha assinaram o Tratado de Fontainebleau, decidindo pela partilha de Portugal. Em outubro, Napoleão mandou Junot entrar na Espanha com 28 mil homens, a caminho de Lisboa. Jogando uma última cartada, D. João decretou a prisão dos súditos britânicos e o seqüestro de seus bens. O ministro britânico Lord Strangford fechou a legação, deixou Lisboa e recolheu-se aos navios da esquadra britânica ancorada perto da foz do Tejo.
Então no dia 25 de novembro realiza-se uma tensa reunião do Conselho de Estado para decidir sobre o que fazer. Ficar ou não ficar era a questão. Ficar significava correr o risco de humilhação da família real, de retaliação dos britânicos, que em setembro já tinham bombardeado Copenhagen, e de perda do Brasil, que representava 80% do comércio externo de Portugal com suas colônias e 60% de todas as exportações portuguesas. Fugir, além de humilhante, significava trair os súditos, abandonar o reino aos inimigos, enfrentar a ira da população já agitada de Lisboa, incorrer ainda mais no ódio da esposa, além de ter que enfrentar os inúmeros perigos de uma viagem marítima de quarenta e cinco dias com toda a família, milhares de cortesãos e grande quantidade de valores.


Muito bem, vamos parar agora para uma ligeira mudança de planos. Sim, nesse momento Dom João tem duas opções e só pode escolher uma: partir ou ficar. A história de como seria se a Família Real viesse para o Brasil, todos nós conhecemos, afinal, ela é influência direta da nossa atual realidade política, social e cultural. E se eles não tivessem vindo? Se a Família Real não tivesse vindo para o Brasil, muito provavelmente a mesma teria sido humilhada e o frágil Dom João teria enlouquecido com a vitória napoleônica sobre Portugal. Quanto ao Brasil, sim, conflitos em busca de poder, de lucros, ou ainda de abolição da escravatura, seriam – como foram – inevitáveis.
As influências em termos de hábitos, cultura, arquitetura, alimentação, vestimenta, trazidas pela Corte portuguesa, é claro, não teriam passe. E aí vem a pergunta: a abertura dos portos, a criação do Banco do Brasil, a criação da Academia de Belas Artes, por exemplo, jamais existiriam? Isso não se pode afirmar categoricamente, visto que outras instituições que suprissem as necessidades e acordassem com a realidade da população residente no Brasil, ou dos fortes politicamente, seriam criadas. As circunstâncias da não vinda da Família Real, poderiam ter conduzido o Brasil a situação muito diferente da atual; ou ainda mesmo gerar organização política-social bem próxima daquela em que vivemos. Existem sentimentos e interesses inerentes ao homem, que acabam por produzir bons e maus sujeitos, exemplares e execráveis personalidades numa comunidade. Burocracia, vertente para os arranjos políticos e tolerância com a corrupção que embarcaram na longa travessia de 1808, poderiam ter vindo de outra forma, poderiam ser mais amenas ou mais acentuadas; não se sabe. Mas se Dom João não estivesse “com la cabeza perdida”, a parte boa e bela da nossa herança cultural estaria, esta sim, infelizmente perdida.

TEXTO ESCRITO PELA ALUNA GEORGIA



Abaixo segue a reflexão do historiador José Murilo de Carvalho. Ele é professor titular da UFRJ e autor de Dom Pedro II: Ser ou não ser (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

“ Contrariando a opinião dos conselheiros, o príncipe regente D. João tomou a mais importante decisão de sua vida. Resolveu ficar.O episódio dramático ficou conhecido na história portuguesa como o Dia do Fico. As conseqüências da decisão são conhecidas. Os franceses levaram a família real para o exílio na França, permitindo que Carlota Joaquina voltasse para a casa dos pais na Espanha, e passaram a governar com o apoio de seus amigos na corte portuguesa: o conde da Ega, cuja mulher se tornou amante de Junot, Araújo e Azevedo, o marquês de Alorna e outros.Pelo lado da Grã-Bretanha, Canning, ministro dos Negócios Estrangeiros, levando em consideração a longa história de amizade com Portugal, decidiu não bombardear Lisboa. Contentou-se em ordenar a Lord Strangford que confiscasse a esquadra portuguesa para que não caísse nas mãos dos franceses. Mas fez também o que mais lhe interessava: pôs em prática o dispositivo da convenção secreta de setembro que lhe abria os portos das colônias portuguesas, sobretudo do Brasil.O infortunado D. João não resistiu ao impacto dos acontecimentos e às agruras do exílio. Sua depressão agravou-se e o levou à morte em 1812. Um ano depois, seguia-o sua não menos desventurada mãe, a rainha D. Maria I. Na corte espanhola, Carlota Joaquina retomou suas confabulações políticas, mas por pouco tempo. Em julho de 1808, Napoleão forçou Fernando VII, filho de Carlos IV, a devolver o governo ao pai. Deste, exigiu que renunciasse em favor de seu irmão, José Bonaparte. A família real espanhola reuniu-se à portuguesa no exílio. Mas com o início da queda de Napoleão após a batalha de Leipzig, em outubro de 1813, Fernando VII foi libertado e regressou à Espanha com Carlota Joaquina. Mais hábil que o irmão, a princesa negociou com as cortes a sucessão ao trono espanhol, usando como chamariz a proposta de reunir as duas coroas, uma vez que era a legítima regente do trono português. Com o apoio de seus partidários em Lisboa, conseguiu concretizar a fusão, criando a União Monárquica Ibérica, uma retomada da União Ibérica de 1580. Mais de século e meio mais tarde, a Constituição espanhola de 1978 conferiu a Portugal o estatuto de Comunidade Autônoma da União Monárquica Ibérica. Enquanto tudo isso se passava na Europa, as colônias espanhola e portuguesa na América entraram em fase de grande turbulência. Desaparecida a fonte de legitimidade monárquica que por três séculos sustentara a unidade dos dois sistemas, as forças centrífugas se manifestaram e teve início o processo de desagregação. Cada vice-reinado, cada capitania-geral, cada audiência e até mesmo cada municipalidade julgou-se no direito de decidir a quem obedecer. Para abreviar a história, na América espanhola os quatro vice-reinados e quatro capitanias-gerais se tinham transformado, em 1830, em 16 repúblicas independentes, organizando-se todas pelo modelo norte-americano. Posteriormente, acrescentaram mais dois países, Cuba e Panamá. Na América portuguesa, as coisas não se passaram de modo muito distinto. Das 18 capitanias-gerais existentes em 1808, as de maior peso econômico movimentaram-se no sentido de construir a seu redor novos centros de poder político. Como no lado espanhol, a luta foi longa e marcada por guerras civis, rebeliões, repressões. O processo teve início, como não podia deixar de ser, em Pernambuco. Já em 1801, os participantes da Conspiração dos Suassunas tinham buscado o auxílio de Napoleão para se libertarem de Portugal. Com a prisão da corte portuguesa, voltaram à ação. Havia, no entanto, uma divisão básica entre os rebeldes. De um lado, os ideológicos do Areópago de Itambé (primeira loja maçônica do Brasil, fundada em 1796) e do Seminário de Olinda, padres em sua maioria, mais liberais, contrários à escravidão. De outro, os Suassunas e demais senhores de engenho, que não admitiam a abolição. Depois de muitas batalhas, criou-se a República dos Estados Unidos do Equador, que incorporava as capitanias vizinhas: Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas. A escravidão foi mantida, adotando-se um dispositivo constitucional que previa futuras medidas abolicionistas. A transição mais tranqüila, ou menos tumultuada, verificou-se nas capitanias vizinhas à sede do vice-reino. Os antigos inconfidentes mineiros, apoiados em seus parentes paulistas, retomaram a luta independentista e negociaram com os comerciantes do Rio de Janeiro um pacto federativo. O esforço foi facilitado porque as tropas portuguesas haviam sido deslocadas pela Grã-Bretanha para auxiliar na luta contra a França na Península Ibérica. As unidades federadas adotaram o nome de República dos Estados Unidos do Brasil, mantendo-se o Rio de Janeiro como capital. A nova Constituição também manteve a escravidão. A capitania do Espírito Santo também aderiu à federação. Em 1930, em decorrência de seu rápido desenvolvimento econômico, São Paulo separou-se dos Estados Unidos do Brasil, constituindo a República Bandeirante. Mais trabalhosa e violenta foi a batalha na capitania-geral da Bahia. As “francesias” (idéias sobre a Revolução Francesa) já lá haviam chegado em 1798, quando inspiraram o que se chamou de Conspiração dos Alfaiates. Vieram sob a forma de livrinhos subversivos distribuídos pelo comandante Larcher, da fragata La Preneuse. Além disso, houvera em 1806 uma revolta escrava em Salvador, e outra mais séria se dera em 1809 no Recôncavo. Os remanescentes dessas revoltas e conspirações voltaram a agir após a deposição do regente. Mas o poder econômico estava nas mãos dos senhores de engenho do Recôncavo e dos grandes traficantes de escravos de Salvador. Após prolongada guerra civil e racial, venceram os mais fortes. A parceria comercial com potentados africanos foi fortalecida com a preciosa ajuda do baiano Francisco Félix de Souza, traficante de escravos em Ajudá. No final, criou-se o Reino Unido da Bahia e da Guiné, a que aderiu a capitania de Sergipe del Rei. Sobrevindo a partilha da África pelas potências européias no final do século XIX, dissolveu-se o Reino Unido, e a Bahia tornou-se uma república. Na capitania-geral de Rio Grande de São Pedro do Sul, a comunhão de interesses com a Banda Oriental, sempre receosa do expansionismo de Buenos Aires, levou à solução natural da união, resultando do acordo a formação da República dos Pampas, com capital em Montevidéu. A ela aderiu a capitania de Santa Catarina. O tráfico de escravos foi abolido e se deu logo início ao processo de gradativa abolição da escravidão. Finalmente, a situação mais complexa verificou-se na área do antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará. Não contando com centro econômico hegemônico, a região envolveu-se em longo período de turbulência, o que provocou a intervenção inglesa. Só em 1850 é que se consolidou o novo Estado que herdou o mesmo nome do antigo, sob uma forma republicana de governo, mantendo-se a escravidão.Ao longo de todo esse processo de formação dos novos estados, a Grã-Bretanha esteve sempre vigilante para garantir o livre acesso aos mercados. Exerceu também constante pressão no sentido de interromper o tráfico de escravos, negociando tratados com cada um dos cinco novos países, com exceção do Estado do Maranhão e Grão-Pará, onde proibiu o tráfico logo após a intervenção.Diante dessa evolução da colônia portuguesa da América, fica-se a pensar sobre como teria sido seu destino caso o príncipe D. João tivesse optado por abandonar Portugal para fugir das tropas de Junot.”

Preto no Branco-Herança Cultural
Revista de História

POSTAGEM REALIZADA PELA ALUNA GEORGIA

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